abril 01, 2005

Tangerina I - viver

Experimentava viver, quase como um exercício. Tinha seios nas mãos e a cara totalmente tranformada em ovo. Palpitava-lhe nas têmporas um amor patético pelo mundo, tão ridículo e imenso que lá caberiam, pouco apertados, os outros amores. E dormia acordado, pelo prazer de esbater fronteiras.

Eu tenho raiva à ternura. Eu tenho raiva de ter raiva à ternura. Eu tenho a doença da ternura por ter raiva. Eu tenho tudo excepto a ternura. Eu não tenho ternura e sofre de inveja de quem tem ternura. Eu já só tenho raiva.

Manuel Cintra, Tangerina (1990)