abril 15, 2005

palavras que levam aos sons... sons que nos trazem as palavras...

O avô cavernoso
Instituiu a chuva
Ratificou a demora
Persignou-se
Ninguém o chora agora
Perfumou-se
Vinte mil léguas de virgens vieram
Inutéis e despidas
Flores de malva
E a boina bem segura
Sobre a calva

Ao avô cavernoso quem viu a tonsura?
E a tenda dos milagres e a privada?
Na tenda que foi nítida conjura
As flores de malva murcham devagar
Devagar
Até que se ouvem gritos, matinadas


Palavras Zeca Afonso
Som Mão Morta

abril 01, 2005

Tangerina I - viver

Experimentava viver, quase como um exercício. Tinha seios nas mãos e a cara totalmente tranformada em ovo. Palpitava-lhe nas têmporas um amor patético pelo mundo, tão ridículo e imenso que lá caberiam, pouco apertados, os outros amores. E dormia acordado, pelo prazer de esbater fronteiras.

Eu tenho raiva à ternura. Eu tenho raiva de ter raiva à ternura. Eu tenho a doença da ternura por ter raiva. Eu tenho tudo excepto a ternura. Eu não tenho ternura e sofre de inveja de quem tem ternura. Eu já só tenho raiva.

Manuel Cintra, Tangerina (1990)

de viagem ao passado...

numa breve viagem ao meu passado, que demorou umas tantas horas... em caixas de recordações, que mais se assemelham a baús antigos onde se afogam lembranças, fui eu encontrar recordações de tempos que passei em solidão voluntária, daquela que faz amadurecer. folhetos, de tempos sentada numa mesa de bar... a ouvir palavas... dos outros, não minhas, embora as sentisse como tal. decorria o ano 2000. eram os serões de palavras que nos ficam da usura dos dias. não sei o que retirei de tanta coisa que ouvi. o certo é que as palavas me tocavam, e eu gostava e deliciava-me de estar ali, sozinha... sempre as mesmas caras a assistir, só as palavras mudavam... era como que um encontro. com as pessoas que ali estavam (o que sentiriam elas...?) e com tudo o que ouvíamos em conjunto.
de umas vezes havia apenas palavras, outras palavras e sons... outras ainda em que havia cheiros. relembro agora maria toscano (professora de profissão e escritora de coração...) . foi dos momentos que mais me marcou. houve a distribuição de folhetos com... palavras... e de incenso. porque a escrita não afecta apenas a visão (e por consequência o coração...), mas também os restantes sentidos. ali viu-se, ouviu-se, sentiu-se o sabor de um copo que sempre nos acompanhava, apelou-se ao olfato, com o cheiro do incenso que tornou o ambiente mais calmo e cerimonial, e... sentiu-se a pele arrepiar, pelo ambiente que maria toscano conseguiu criar... por falar nisso, tenho de procurar o livro que comprei nessa sessão - "a utupia da coragem" - para o reler...
conheci ainda manuel cintra. nascido em lisboa, no ano de 1956. é poeta, actor, encenador e cenógrafo. a sua passagem por estas sessões de poesia, foi também marcante. manuel cintra encenou, fez a selecção musical, cenografia e interpretou (utilizando assim todas as suas habilidades). palavras de ruy belo e carlos drummond de andrade, foram ditas e cantadas. em português de portugal e do brasil. um verdadeiro senhor. troquei umas palavas com ele (pessoa simples) . no fim escreveu-me umas palavas amigas no folheto. durante uns tempos vou tentar reproduzir aqui, pequenas partes de um texto por ele escrito, de uma edição de autor (de 1990), que tem por nome Tangerina.



(...) Chamo-me Manuel Cintra, sou poeta, e amo o que ambos escreveram [Ruy Belo e Drummond]. o Carlos faz-me rir, o Ruy sempre me fez chorar. O Ruy que na infância me fez ser peixe [ambos do signo Peixes], é a metade do que na idade adulta o Carlos me entrega: a hipótese de ser pássaro, e de rir com ternura pela humanidade.
Decidi pois fazer este espectáculo. (...) Direi Drummond de Andrade em Brasileiro, Ruy Belo em Português. E cantarei pelo meio, porque a poesia, quando é mesmo poesia, canta sempre.

O problema da habitação, é que eu não sei nunca onde moro. O poder ultrajovem, é que eu, por mais que tente, não consigo envelhecer. E agora? Será que vale a pena tentar que dois poetas se abracem? Penso que não. O caso é que ambos se abraçaram faz muito, na minha infância, na nossa, no fundo do coração.

O Problema da habitação, Manuel Cintra, Junho 2000